sábado, 20 de março de 2010

Propostas para um Novo Credo.



Vez por outra somos surpreendidos pela genialidade alheia.
Estive com Frei Betto duas vezes. 
Nosso primeiro encontro se deu no Congresso sobre Fé e Política, realizado em Goiânia em 2006 e em 2007 participei da exposição do Centro Cultural da Caixa no Rio de Janeiro, cujo tema da mostra era "Repressão nunca mais".
Fazia uma análise com fatos e fotos da Repressão política no Brasil de 64. 

Houve uma exposição sobre o filme biográfico feito em sua homenagem chamado "Batismo de sangue".
Frei Betto e Frei Tito, os frades dominicanos mais expoentes da época, foram os homenageados da noite.
O segundo, já morto, o primeiro, intectual ativo e crítico pensador, nos brindou com sua sabedoria poética fazendo uma rápida síntese daquele momento histórico vivido na década de sessenta.

Frei Betto é um escritor que me encanta.
Seu texto destila o nardo mais puro da poesia, sua espiritualidade me arranha a alma e sua humanidade me empurra para a vida.
Na revista “Caros Amigos” de Abril de 2008, Frei Betto escreveu uma proposta de um Novo Credo. Segue na íntegra o texto.

Boa leitura a todos!
Salamaleiko.
Frei Eduardo F. Melo

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Creio no Deus desaprisionado de todas as religiões existentes.
Deus que precede todos os batismos, preexiste aos sacramentos e transborda à todas as doutrinas religiosas.
Livre de teólogos, Ele derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos da vida após-morte.

Creio no Deus criador do universo, doador da vida e da fé...
Ele está presente em plenitude na natureza e nos seres humanos.
Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima...
Ele atrai, enlaça, abraça e une – o amor.
Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz o pensador islâmico Rumî:

"Não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra."

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer.
Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu.

"Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece."

Creio no Deus da fé de Jesus...
Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo.
Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas.

"Deus que extrapola a nossa fé, discorda dos nossos juízos e ri de nossas pretensões e diverte-se de vez em quando com as marotagens humanas."

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a minha primeira namorada.
Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a Lua para enfeitar a noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos maníacos depressivos...
No Deus das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada.
Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual.

"Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade."

Creio no Deus da alegria de Maria...
Deus da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros.
Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia...
Deus que observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa dos namorados e com os versos de amor recitados nas tardes de sábado.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel...
Deus das diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia.

"Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas."

Creio sobretudo que Deus crê em mim...
Ele crê em cada um de nós, porque sabe as motivações e os fracassos mais íntimos de cada humano.
Deus que crê em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nossa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.


Salamaleiko.
Frei Eduardo F. Melo
Santa Teresa - ES.
20 de março - 2010.

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