Rastros de Memória.

Quinta-feira. Eram cinco horas da tarde...
Cheguei ao hospital e fui direto ao seu quarto.
Surpreendi-me pelo estado avançado de sua doença.
O cancêr havia detonado suas últimas esperanças.
Com o olhar marejado, lágrimas escorriam em sua face já cansada de lutar pela vida.
Chorei, porque lembrei de mamãe.
Vi no seu rosto a serenidade de uma "maria".

Hoje preciso descansar.
Acompanhamos ontem o enterro da Rosângela.
Sua família, consternada, chorava pela dor que dilacerou seu corpo por longos anos.
Sua aparência era quase irreconhecível.

O dia amanheceu com a bruma calma e fria da cidade.
Dia de chuva, dia de tomar café com leite pra espantar o frio.
Dia de fechar a cortina do quarto e ouvir a melodia dos ventos.
No silêncio e na escuridão do meu quarto, sinto minh'alma quieta.
Medito suavemente com o incenso que perfuma o silêncio de meu espaço sagrado.
Apesar da dor sentida no fim de semana, confesso a serenidade de meus dias.

Minha partida se aproxima!
Calma! Esperem!

Não desejo morrer! Refiro-em à viagem que farei para a Europa no próximo mês de maio.

O sonho de conhecer Santiago de Compostela e fazer a pé o percurso de 780 km é uma expectativa antiga.

Estando lá, já me programei para conhecer a Cidade Santa: Israel.

Quero andar pelas estradas empoeiradas da Palestina só para respirar a saudade do meu mestre!

"Quero subir pelas montanhas da cidade santa para contemplar o pôr do sol que fazia o carpinteiro de nazaré orar a seu Pai no silêncio da noite".

Olhando pela janela de meu quarto, nesta nublada tarde de outono, reconheço o quanto o Pai tem sido bom para comigo.

Depois de um longo tempo, passei a desejar uma espiritualidade de afetos.

Hoje, guardo e amo o silêncio do meu coração.

"Abandonei o esforço de fazer de minhas orações uma técnica de como obter coisas de Deus."

Destruí valores que me aprisionavam numa religiosidade sem vida e sem nexo com a realidade.

"Reaprendi que orar é inspirar ausências."

Creio firmemente que os silencios divinos são espaços que Deus esolheu para experimentarmos profundamente nossa liberdade.

Hoje não reclamo mais por interveções imediatas do divino.

Sem muitos barulhos, aspiro colocar minh'alma numa quietude parecida com a que o sumo sacerdote experimentava ao entrar no Santuário de Jerusalém, no Santo dos Santos.

Confesso que humildemente só consigo esta graça ao celebrar a Eucaristia.

Só através da Eucaristia posso perceber o imperceptível e sublime.

Desejo vivenciar minha espiritualidade em atos devocionais.

Na beira do leito de quem jaz a espera da morte.

Na casa e junto dos que me querem bem, independente de estados de saúde ou condição financeira.

Quero ver o rosto do nazareno naqueles, que como eu, têm sede de esperança e confiam num mundo melhor já aqui nesta terra.

Hoje quero estar em paz.

Salamaleiko.

Frei Eduardo F. Melo

Santa Teresa - ES.

22 de março/ 2010.